Arquivo | janeiro, 2010

Lágrimas de Portugal

26 jan

Zélia Adelaide é uma imigrante portuguesa, que, como tantos outros, veio ao Brasil em busca de uma vida melhor. O texto relata um pouco de sua história, desde a infância, na pequena aldeia portuguesa em que vivia, até a chegada ao Brasil e as inúmeras mudanças sofridas em sua vida a partir de então. A breve infância em Portugal, a chegada ao Rio de Janeiro e, posteriormente, a mudança para São Paulo, os empregos, o casamento, o nascimento de seus quatro filhos e a morte dos pais são os pontos altos desse relato. Foi na casa que divide com o marido Moisés, que Zélia sentou para dividir conosco sua emocionante e comovente história de vida. Zélia Adelaide Pinto nasceu dia 28 de novembro de 1942 em Lamas, aldeia da região de Trás-os-Montes, Portugal. Filha de lavradores, o pai, José Joaquim Serra, e a mãe, Delmira dos Santos Pires, passavam a maior parte do tempo trabalhando no campo, deixando os outros quatro filhos aos cuidados de Zélia que, na época, tinha apenas dez anos. Porém, tamanha responsabilidade não impediu que ela realizasse seu sonho de estudar. Em seu depoimento, Zélia lembrou que a escola que frequentava localizava-se na própria aldeia em que nasceu. Lá, não havia banheiros para os alunos, os quais, em caso de necessidade, eram obrigados a correr às suas casas ou a alguma moita perto do prédio da escola. Ela ainda enfatizou que meninos e meninas tinham horários diferentes e estabelecidos para usar o “banheiro-matinho”. Contudo, a simplicidade das instalações não acabava com a diversão da criançada, que gostava de brincar de roda, de três marias e de esconde-esconde. Zélia conta que, devido à tradição religiosa portuguesa, os colegas de classe e todos os seus familiares se encontravam, indispensavelmente, na missa de domingo, momento no qual usavam suas melhores roupas. Ela ainda lembra que, no período de quaresma, as brincadeiras mais agitadas, que envolviam corridas, pulos e piruetas, eram deixadas de lado e os estudantes optavam pelas brincadeiras mais calmas que lhes permitiam ficar sentados no pátio da escola. Zélia estudou até o 4º ano do primário e não se esquece de sua prova final. Na época, era ritual que as mães das meninas costurassem vestidos novos para as filhas e as acompanhassem na realização do exame, que era feito em uma aldeia próxima de onde morava. Devido ao trabalho no campo, a mãe de Zélia não pôde acompanhá-la. Ela confessa que, apesar da melancolia, sentiu felicidade ao ver o reconhecimento e o orgulho nos olhos dos pais. Zélia lembra carinhosamente que o amor materno e paterno nunca foi ausente. Foi no ano de 1954, após muitos dias em alto mar nas apertadas e desconfortáveis acomodações de terceira classe do navio, que Zélia desembarcou com seu pai na cidade do Rio de Janeiro. A mãe havia permitido que a filha viajasse mesmo ciente de que a vida em Portugal se tornaria mais difícil sem sua ajudante. A família estava em busca de condições melhores, que dificilmente encontrariam na erma aldeia portuguesa. Zélia, ainda menina, sofria e chorava muito pela falta que sentia da mãe e dos irmãos. A saudade entre eles era recíproca. A vida que o Rio de Janeiro ofereceu a Zélia parecia difícil, mas não era nada perto do que eles iriam enfrentar após a mudança para São Paulo. No Rio, ela e o pai se hospedaram na casa de tias, que costuravam roupas e ofereciam todo conforto que estava ao alcance para mimar a menina que falava com sotaque arrastado. O tempo longe da família fez com que o pai, José, começasse a ficar deprimido e com vontade de retornar a Portugal. Entretanto, em 1956, uma tia que residia em São Paulo escreveu a ele pedindo para que não retornasse à “terrinha” e que mudasse para São Paulo, onde o clima era mais ameno e onde ele poderia se adaptar mais facilmente. Atendendo ao pedido, Zélia e seu pai instalaram-se no bairro de Itaquera, Zona Lesta da capital paulista, na casa dessa tia. Zélia explica que essa passagem foi a maior decepção de sua vida, pois na casa das tias cariocas tinha conforto e, em São Paulo, a casa em que se hospedou oferecia menos comodidade que sua residência em Portugal. Lá, não tinha água encanada e a louça tinha que ser lavada em uma bacia no quintal. Mesmo assim, o pai resolveu alugar uma chácara no bairro. Zélia se recorda de que, nesse período, São Paulo caracterizava-se pela grande quantidade de chácaras e pelas ruas sem asfalto. Ela ainda lembra que a maioria da população andava a pé ou de bicicleta, pois os bondes circulavam na maior parte do tempo no centro da cidade e, portanto, não eram acessíveis a todos os bairros. Na nova chácara, José criava duas vacas e um cavalo. Como era a única companhia do pai, Zélia, então com treze anos, tornou-se a responsável por tirar e vender, de porta em porta, o leite da vaca. Ela conta que percebia que as pessoas compravam seu leite por “dó e piedade”. Zélia passou a assumir responsabilidades de um adulto, uma vez que era ela quem cozinhava, lavava a roupa e cuidava da casa. Ela lembra que a casa era inteira de tijolo e, por isso, muito trabalhosa para limpar, assim como o fogão, que era movido a querosene. Zélia se recorda de que o fato de morar apenas com o pai dificultava conversas femininas. Ela lembra que quando, em suas palavras, “ficou mocinha”, seu pai foi bastante compreensivo e explicou a ela que toda menina daquela idade vivia aquela experiência. Zélia ainda conta que seu pai, na época, disse que se algum homem “chegasse perto” ela poderia ser mãe, por isso, sem entender muito bem, sempre que algum menino se aproximava, ela se lembrava das palavras do pai e, inocentemente, procurava se afastar. Zélia alimentava uma enorme vontade de trabalhar fora, porém, seu pai não permitia. Ela, então, por intermédio de uma tia, conseguiu um emprego no qual costuraria em casa e a mão, bolas oficiais de futebol. O uso de uma linha encerada fazia com que, aos quinze anos, as mãos de Zélia já fossem calejadas. Assim, cansada daquele emprego, Zélia encarou o pai e lhe disse que trabalharia fora de qualquer maneira, nem que fosse como empregada doméstica. No ano de 1958, José mandou que a mãe de Zélia e seus irmãos viessem de Portugal para o Brasil. Desse modo, com a mãe para auxiliar o pai, Zélia conseguiu o que queria e, aos quinze anos, já trabalhava como empregada doméstica em um apartamento na Avenida 9 de Julho. O trabalho havia sido arranjado por um “conhecido” que, mais tarde, viria a ser seu marido. Vale aqui dizer que o primeiro presente da vida de Zélia foi no aniversário de debutante, quando ganhou um par de sapatos. Mais tarde, Zélia saiu desse emprego e passou a trabalhar na casa de outra família, dessa vez no Jardim Paulista, onde morava um famoso decorador francês, sua mãe, esposa e os quatro filhos. A família Assumpção tinha quatro empregadas, além de uma passadeira e um motorista. Zélia começou como copeira e servia, inclusive, as festas que a família proporcionava. Nessas reuniões, ela conheceu pessoas da alta sociedade da época, como a cantora Maysa e outros membros da família Matarazzo, além de políticos e outros artistas. Mais tarde, ela assumiu o posto de babá e passou a cuidar das contas da casa quando os patrões viajavam. Ela conta que os pedidos da mercearia, açougue e padaria eram feitos por telefone, em um sistema delivery, o que não era nada comum na época. O reconhecimento de seu trabalho era motivo de orgulho para Zélia. Ela se sentia muito responsável e satisfeita por conseguir cuidar de uma casa grande e sofisticada como era a da família Assumpção. Ela também confessa que apreciava quando seus patrões elogiavam seu serviço e sua caligrafia deixada em bilhetes. A confiança depositada em Zélia era tão grande que os patrões a convocavam, até mesmo, para corrigir a lição de casa das crianças menores. Apesar da juventude, da simplicidade e do trabalho em uma casa que ostentava luxo, Zélia faz questão de ressaltar que nunca teve inveja ou se sentiu depreciada por não ter uma vida igual à do local de trabalho. Pelo contrário, ela relata que tinha a consciência de que no mundo havia pessoas ricas e pobres, e agradecia a Deus por aquele emprego, no qual era muito bem tratada e ganhava um bom salário. Zélia só abandonou o emprego quando decidiu se casar. Moisés Augusto Pinto, seu marido, pertencia à mesma aldeia portuguesa de Zélia. A paquera começou quando ele e o pai foram visitar a família Serra, o que era muito comum entre conterrâneos que tentavam manter laços com Portugal. Zélia conta que demorou em responder ao convite que Moisés lhe havia feito para um passeio. Os dois acabaram namorando durante um ano. Nos passeios, o casal saía elegante pelas ruas de São Paulo. Ela usava salto alto e Moisés, terno e gravata. Caminhar pelo aeroporto de Congonhas era atração para eles, que ficavam apreciando as decolagens e os pousos das aeronaves. Eles também iam a eventos no Parque do Ibirapuera, a bailes no clube da Portuguesa, a praças e faziam visitas a conhecidos. O pai de Zélia gostava muito de Moisés e aprovou o casamento, pois dizia que ele era um “rapaz trabalhador”. Todavia, Zélia afirma ter se casado cedo demais; tinha apenas dezoito anos. Ela conta que se pudesse voltar no tempo, não teria se casado com essa idade, já que havia perdido boa parte de sua infância devido à vida difícil e ao rápido ingresso a um relacionamento, que culminou na formação de uma família. O casamento foi, segundo palavras da noiva, muito bonito. Na época, era costume o noivo comprar o vestido branco para presentear a futura esposa. Assim aconteceu com Zélia, que ganhou um vestido comprado na tradicional Rua São Caetano. Os noivos reuniram as famílias para uma grande festa, ao estilo caipira. José Joaquim mandou matar um bezerro para a ocasião, e a festa teve muita fartura. Os recém-casados, contudo, não puderam aproveitar muito, pois partiram rapidamente para Poços de Caldas, onde passaram a lua-de-mel. Na volta da viagem, Zélia foi morar na casa dos sogros em Santana, zona norte de São Paulo, onde ficou por sete anos. Lá, nasceram os dois primeiros filhos, Luis Antônio e Ana Maria. Ela conta que morar com a sogra por vezes ajudava e por vezes atrapalhava, principalmente pelo fato de divergirem nas opiniões sobre a criação dos filhos e sobre as normas da casa. Oito anos mais tarde nasceu a terceira filha, Maria Fernanda. O quarto filho, Luis Eduardo, nasceu com uma diferença de dezessete anos para o primeiro filho e de apenas doze anos para a primeira neta. Educar os filhos, sobretudo os primeiros, foi bastante complicado para Zélia, uma vez que, além da função de mãe, ela ajudava na mercearia que Moisés possuía em sociedade com o pai dele, na Avenida 9 de Julho. Zélia revela que quem ajudava a cuidar do filho mais velho era o pastor-alemão “Amigo”. Ela conta que quando Luis chorava, o cão ia correndo avisá-la e não saía de perto enquanto ela não fosse acalmar o bebê. Ele era, segundo Zélia, a “babá eletrônica” da família. No entanto, apesar da ajuda dos sogros, pequenas discussões acabam surgindo na família. Tudo o que Zélia desejava nesse momento de sua vida era a casa própria. Foi nesse período que ela e Moisés compraram uma padaria na Zona Norte de São Paulo e passaram a morar no segundo andar do estabelecimento, onde, na verdade, deveria funcionar um depósito de farinha. Lá, havia apenas um quarto, um banheiro e uma cozinha para quatro pessoas, mas, felizmente, essa situação durou pouco tempo, cerca de um ano e meio. A família, então, vendeu essa padaria e comprou uma mercearia no bairro do Imirim. Zélia conta que, apesar de ter trabalhado muito nesse comércio, foi o melhor período de sua vida. Ela diz sentir saudade dos momentos em família e do começo das conquistas. Era um período alegre, pois ganhava dinheiro, divertia-se, conversava com as pessoas sem medo da violência. Ela lembra que um telefone, objeto raro na época, instalado à disposição da clientela, era um dos atrativos da loja. Zélia ainda destaca que nessa época, faltavam mercadorias, como o leite, pois havia mais consumidores do que quantidade de produtos fabricados. Ela conta que, nos casos de escassez, guardava alguns sacos de leite para os clientes mais fiéis. Essa mercearia, mais tarde, foi vendida e o casal montou um mercado no bairro de Itaquera, em 1983. A inflação nesse período era muito alta e Zélia não se esquece da loucura que era remarcar os preços várias vezes ao dia. Nesse mesmo ano, ela voltou a Portugal e revela ter sido emocionante rever sua terra e a casa onde nasceu. Nessa viagem, ela conta que aproveitou para conhecer a França. Nos anos seguintes, Zélia retornou a Portugal, acompanhada dos filhos e dos netos, diversas vezes. Ela adora passear com a família por lá e contar histórias da sua breve infância. Após a venda do mercado, a família comprou uma lanchonete na Avenida Paulista, mas nesse período Zélia já não trabalhava mais, pois sócios substituíam sua mão-de-obra. Ela passou, então, a dedicar-se à família e à casa. Entre conquistas e experiências, Zélia sofreu os choques naturais da vida, como a morte dos pais. Ela perdeu a mãe, vítima de uma parada cardíaca, aos 56 anos. Neste dia, ela conta que, na busca da receita do fular, tradicional pão português, havia conversado muito com sua mãe por telefone. Ao saber da morte de dona Delmira, a família tentou esconder a notícia de Zélia, que estava no 8º mês de gravidez do quarto filho. Porém, ela teve certeza da perda quando viu sua irmã no hospital, sentada, segurando os anéis e brincos da mãe. Desde então, o fular passou a compor uma tradição culinária na casa de Zélia. Sete meses depois da morte da mãe, o pai de Zélia sofreu um derrame no dia do aniversário dele. No hospital, sofreu outro derrame, que deixou todo o seu lado direito paralisado. Zélia sofria no corredor do hospital ouvindo os gritos do pai, que dizia ter um “formigueiro na cabeça”. Nos três meses de internação, ela ia visitá-lo todos os dias. Via o pai agressivo pelo fato de estar amarrado na cama por causa de uma tentativa de fuga. Zélia se dividia entre a responsabilidade de cuidar do pai e do filho caçula, então com oito meses. Após receber alta do hospital, José ficou hospedado na casa de Zélia sob seus cuidados. Ela relata que a impressão que tem é que seu pai sabia quando ia falecer, pois, naquele dia, chamou muito por ela e por Moisés para pedir desculpas por qualquer coisa que pudesse ter-lhes magoado algum dia. Para falar sobre a grande felicidade que são os netos, Zélia se esquece, ao menos por um tempo, das tristezas. A primeira nasceu no ano de 1990 e a última em 2008. Por enquanto, são sete netos no total e ela ainda conta com a possibilidade de ganhar mais netinhos, já que o filho caçula ainda não tem filhos. Com o passar dos anos, a família, que Zélia sempre esteve acostumada a ter por perto, foi se espalhando pelo Brasil e pelo mundo. Em 1999, o filho mais velho, a nora e três netos se mudaram para Portugal. Ela conta como foi difícil perder a convivência, especialmente com os netos, que adorava paparicar. Eles acabaram retornando ao Brasil seis meses depois, mas a família continuou a se espalhar. Hoje, o filho mais velho, Luis Antonio, vive em São Paulo, Ana Maria mora em Cotia, Maria Fernanda em Goiás e Luiz Eduardo em Portugal. Zélia revela que as festas de fim de ano, quando a família toda se reúne em sua casa, é a época de maior alegria do ano. Ela diz que o que sente não é tristeza, mas sim um vazio; o mesmo vazio que ela sentia quando deixou Portugal para construir uma vida no Brasil.

Por Liz Terra, Camila Miguel Pinto e Ana Luiza Gelardi Zainaghi